Vacinas: O falso balanço na RTP1

No domingo à noite a RTP1 passou no telejornal a peçaPais optam por não vacinar os filhos.

A ideia de que as reportagens devem ser equilibradas e oferecer igual tempo de antena a todas as opiniões é um conceito que pode funcionar bem em assuntos de natureza mais subjectiva (política, por exemplo). Porém, nenhum jornalista pensaria em convidar um geólogo para explicar o conhecimento disponível sobre a estrutura interna da Terra para, logo a seguir, trazer para a frente da câmara alguém que defenda que a Terra é oca. No entanto, em questões de saúde, parece ser a norma oferecer igual crédito a todas as opiniões, independentemente de serem ou não fundamentadas.

Na tentativa de tratar todas as opiniões como iguais perdeu-se a oportunidade de informar devidamente o público sobre a falsidade dos mitos perpetuados pelo movimento anti-vacinação. E é caso para dizer que até a ambição de realizar uma reportagem equilibrada falhou, já que três opiniões contrárias à vacinação se sobrepuseram a uma única voz a favor das vacinas.

Do lado contra a vacinação, ao longo de toda a reportagem, prevaleceu a mais corrosiva das tácticas do movimento anti-vacinação: o exagero dos efeitos secundários associados às vacinas, alguns puramente fictícios, e a desvalorização dos perigos bem reais e superiores que as doenças representam. 

Os jovens pais de um pequeno bebé, aparentemente conscientes e informados, admitiram beneficiar da imunidade da maioria das crianças vacinadas – imunidade de grupo. No entanto, não demonstram ter consciência de que o acto de não vacinar os seus filhos coloca toda a comunidade em risco: outras crianças que não podem ser vacinadas por razões de saúde genuínas, as demasiado jovens e mesmo as crianças vacinadas (não existe uma vacina 100% eficaz).

Através do testemunho do filho assistimos, mais uma vez, ao caso de um homeopata a promover a não-vacinação, uma prática irresponsável defendida por muitos destes terapeutas não-convencionais. Para não relegar a oposição às vacinas apenas para o campo das terapias não convencionais, a inclusão de um médico de Clínica Geral parece reforçar a ideia que as dúvidas quanto às vacinas têm validade. O grande problema e que nunca é dito na reportagem – uma notória falta de transparência e honestidade – que o Dr. Francisco Patrício é o presidente da Associação Médica Portuguesa de Homeopatia. Não admira, portanto, que o argumento das vacinas como “sobrecarga informacional”, seja um conceito não sustentado pela investigação científica

Imagem retirada da reportagem da RTP

A RTP perdeu também a oportunidade para salientar o facto de Portugal não ser uma ilha isolada. Ao mencionar os surtos na Europa e nos Estados Unidos devia ter-se aproveitado para mencionar a quantidade de pessoas de várias regiões do mundo que atravessam as nossas fronteiras e que as doenças que estão longe da vista estão na verdade já ali ao virar da esquina. Falar de doenças de Terceiro Mundo não faz sentido: as doenças não têm fronteiras.

No final, ao destacar a criança e o jovem não vacinados como pertencendo a uma minoria contra uma larga maioria, a reportagem da RTP praticamente enalteceu as pessoas não vacinadas. E a técnica de chamar à ribalta o elemento humano, só coube aqueles que não são vacinados. Ao não convidar pessoas que sofreram as consequências das doenças prevenidas pelas vacinas, o público em geral ficou com a sensação que as doenças prevenidas pelas vacinas não são graves e que a vacinação não é necessária.

Temos a agradecer à única voz a favor da vacinação na reportagem, a prestação da Dra. Ana Leça, que fez os possíveis para desfazer os mitos no tempo que lhe foi conferido.

Alguns dados recentes sobre a não vacinação:

An Outbreak of Measles in an Undervaccinated Community – Um estudo publicado em Junho deste ano revela que uma única criança não-vacinada bastou para provocar um surto de sarampo no Minnesota, EUA em 2011. Este surto foi maior no Estado norte-americano nos últimos 20 anos.

Um mapa interactivo ajuda-nos a identificar os surtos de sarampo, rubeola, Poliomielite e tosse convulsa entre 2008-2014.

 

ACTUALIZAÇÃO: A propósito do tema deste artigo, o DN publica hoje a notícia: Não há relação entre vacinas e autismo e cancro. Link para a revisão sistemática mencionada no artigo pode ser encontrado aqui.

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Artigo escrito em colaboração com Marco Filipe